Introdução ao Método Teológico¹
Por Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior
É licenciado em Filosofia pelas Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso – FUCMAT, Campo Grande, MS (1987); bacharel em teologia (1991) e mestre em direito canônico (1993) pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma).
I. Apresentação
1. Objetivo do curso. — Tendo em vista as diretrizes do Magistério e as polêmicas com que hoje em dia se depara todo fiel cristão, este curso propõe-se apresentar, de modo conciso e sumário, todas as principais disciplinas teológicas, a fim de que o aluno, adquirida uma cultura teológica básica, possa ulteriormente se orientar e aprofundar na fé desde sempre professada e ensinada pela Igreja Católica.
2. Estrutura do curso. — O curso compõe-se de duas partes. Na primeira (aulas 2 a 7), sob uma perspectiva diacrônica, procuraremos situar e enraizar o aluno na Tradição da Igreja mediante uma breve e sintética revista da história da teologia e das diversas escolas que encontraram na Verdade, que é Cristo, o seu fermento; o nosso intuito, com efeito, será demonstrar a harmoniosa continuidade do pensamento teológico ao longo da história, a despeito das muitas disputas e divergências entre autores e correntes. Na segunda parte (aulas 8 a 14), sob um olhar sincrônico, tentaremos sistematizar as informações fornecidas na primeira e, por meio dum trabalho propriamente teológico, oferecer subsídios positivos a respeito dos pressupostos da pesquisa em teologia.
Esta primeira aula será dedicada a estabelecer alguns conceitos e distinções elementares, a saber: divisões da teologia em razão da matéria; semelhanças e diferenças entre teologia, filosofia e fé; pré-requisitos morais e sobrenaturais aos que desejam aplicar-se ao estudo da sacra doctrina.
II. Introdução ao Método Teológico
3. Divisão da Teologia. — A Teologia, ciência sobrenatural que trata de Deus e de Suas obras na medida em que a Ele se referem como princípio e fim [1], costuma dividir-se em diversas partes, que nada mais são do que modos específicos de se perscrutar a Revelação [2]. Os três tratados teológicos capitais, dentre os quais nos ocuparemos nesse curso apenas do primeiro, são:
- Teologia Fundamental, ou Apologética, que se ocupa da credibilidade mesma da religião cristã e de seus artigos. Chama-se, por isso, «ciência dos motivos de credibilidade»; trata-se de uma disciplina preparatória, em que a inteligência humana, agora em contato com os dados revelados, procura razões para, depois de iluminada pelo dom gratuito da fé e sob a moção da vontade, crer com fé divina e católica em Deus e, por força de Sua autoridade, em tudo o que Ele próprio nos quis manifestar.
- Teologia Dogmática, ou Sistemática, cuja finalidade é (a) teorética, enquanto reflexão sobre os dogmas da fé e solução das dificuldades por eles suscitadas, e (b) polêmica, na medida em que, ao defender esses mesmos dogmas, refuta as objeções que se podem aduzir contra a fé da Igreja [3]. É o que costumeiramente se entende por teologia.
- Teologia Moral, é dizer, «o estudo científico da atividade humana em relação, mediante os princípios da fé e da razão, à consecução do fim último sobrenatural do homem.» [4]
Esses são os pilares básicos da teologia, ainda que haja, naturalmente, muitos outros campos de pesquisa, como, por exemplo, a Teologia Pastoral, a Teologia Bíblica e suas ciências auxiliares, o Direito Canônico etc. À guisa de introdução, contudo, estudaremos a seguir apenas alguns pontos-chaves de Teologia Fundamental.
4. Natureza científica da Teologia. — A Teologia se nos apresenta, antes de mais, como verdadeira ciência tanto natural quanto sobrenatural e, portanto, distinta da fé em que se alicerça. Ora, a diferença radical entre filosofia e teologia consiste no fato de que, embora ambas considerem a realidade dum ponto de vista global—diferentemente das demais ciências, que se ocupam de determinada classe de entes—, a primeira serve-se tão-só das forças naturais da razão, ao passo que a segunda utiliza a razão ilustrada pela luz sobrenatural da fé (sub lumine fidei supernaturali); numa palavra, investiga as coisas na medida em que se podem conhecer à luz da Revelação Divina [5]. Podemos, portanto, definir o conhecimento teológico como a sabedoria que «procede das verdades reveladas e conhecidas sob a luz sobrenatural da fé» [6].
Feita esta precisão, notemos que a teologia atende às três condições que toda verdadeira ciência deve cumprir. De fato, ela contém [7]:
- princípios certos em que se possa basear, quer dizer, as verdades por Deus reveladas fazem as vezes de premissas a partir das quais se podem inferir outras verdades;
- método adequado a tirar conclusões a partir desses princípios;
- capacidade de coligir tais conclusões num corpo coeso e unitário.
Além disso, trata-se aqui, como se afirmou acima, de uma ciência tanto natural quanto sobrenatural. Diz-se natural toda ciência ou hábito que se adquire por um esforço meramente humano; ora, a teologia, enquanto ciência, exige um empenho por parte do homem em extrair conclusões a partir dos dogmas da fé com apoio da razão e dum método conveniente [8]. É também ciência sobrenatural sob tríplice título: (a) em razão de seu objeto, pois versa sobre verdades reveladas; (b) em razão de sua luz, que é a da fé; e (c) em razão de adesão, porquanto, auxiliada pela mesma fé, a teologia opera com mais segurança e nos ajuda a assentir com mais firmeza aos seus resultados [9].
5. Diferença entre Teologia e Fé. — A fé é uma virtude sobrenatural e infusa por Deus na alma. Com efeito, crer «só é possível pela graça e pelos auxílios interiores do Espírito Santo» [10]; este dom recebido por Deus nos faz prontos e dispostos a aquiescer firmemente a tudo quando Ele nos revelou, não porque «as verdades reveladas apareçam como verdadeiras e inteligíveis à luz de nossa razão» [11], mas antes «por causa da autoridade de Deus que revela e que não pode nem enganar-Se nem enganar-nos» [12].
Tendo isso presente, podemos distinguir a teologia da fé sob três aspectos: (a) objeto sobre o qual versam; (b) motivo por que fazem aderir à verdade; (c) modo por que apreendem o seu objeto [13]. Esquematicamente,
- Objeto. A fé se ocupa de verdades divinamente reveladas; a teologia, dessas mesmas verdades e das conclusões delas inferidas.
- Motivo. A fé crê por força da autoridade de Deus, ao passo que a teologia se baseia no valor e na coerência da ilação lógica.
- Modo. A fê crê mediante um ato simples do intelecto; a teologia procede por meios discursivos (análise, síntese, comparação e dedução).
6. Disposições necessárias aos estudos teológicos. — Assim como as práticas desportivas exigem do atleta um corpo sadio e condicionado à atividade a que ele se quer dedicar, do mesmo modo as ciências pressupõem certos hábitos intelectuais que predisponham o pesquisador a encontrar e abraçar de modo seguro a verdade; e isso se faz tanto mais necessário quanto mais nobre é o objeto de que tratam as várias ciências. Ora, a ciência sagrada, por ter por objeto a Deus mesmo, requer não apenas tais hábitos, mas, sobretudo, a fé sobrenatural e as disposições morais necessárias a todo estudioso [14]:
I. Unidade de vida: a vida moral não pode divorciar-se da intelectual. A teologia é uma realidade eclesial, quer dizer, é uma atividade feita na e em consonância com a Igreja, Corpo místico de Cristo. Com efeito, não é possível ser teólogo sem um sincero e constante esforço por converter-se e configurar-se a Nosso Senhor, por guardar a fé recebida no seio de Sua Esposa por ocasião do batismo, por buscar aproximar-se de Deus e tornar-se Seu amigo. O Cardeal Ratzinger lembra-nos que
[...] a conversão é algo muito mais radical do que, digamos, a revisão de algumas opiniões e atitudes, é um processo de morte. Dito com outras palavras, é uma mudança de sujeito, o eu deixa de ser um sujeito autônomo, um sujeito que subsiste em si mesmo; ele é arrancado de si próprio e introduzido num novo sujeito. Não que o eu simplesmente desapareça, mas, de fato, ele tem que deixar-se cair inteiramente para, em seguida, ser concebido novamente num eu maior e juntamente com este. [15]
Trata-se, ademais, de
[...] um processo sacramental, isto é, de Igreja. O passivo de tornar-se cristão exige o ativo da ação da Igreja, onde a unidade do sujeito do fiel se apresenta corporal e historicamente e só a partir daqui é que pode ser adequadamente entendida a palavra paulina da Igreja como corpo de Cristo, ela se identifica com o revestir-se de Cristo, com o ser revestido de Cristo em que essa nova veste que ao mesmo tempo protege e liberta o cristão é o corpo de Cristo ressuscitado. Isso só é possível pelo batismo. [16]
A cisão entre vida e pensamento—vício hoje infelizmente alastrado em muitos meios acadêmicos—que hoje experimentam muitos intelectuais e cientistas deve servir-nos de aviso de que não é possível fazer nem filosofia, nem Teologia, nem ciência sem virtudes humanas e coerência.
II. Reta intenção: a motivação precípua do teólogo não deve ser outra senão o desejo ardente de promover a glória de Deus e o zelo pela salvação de todas as almas. Assim resume o comentário ao Cântico dos Cânticos arrolado entre as obras de São Bernardo: «Há quem deseje saber simplesmente por saber, e isto é vã curiosidade; há os que desejam conhecer apenas para serem conhecidos, e isto é vaidade; há os que querem aprender a fim de vender sua ciência por dinheiro ou honrarias, e isto é ganância. Há porém os que desejam conhecer para edificar os outros: é a caridade; há também os que buscam o conhecimento a fim de se edificarem a si próprios: é a prudência.» [17]
III. Sincero amor pela verdade: ao defrontar-se com argumentos contrários à fé, o teólogo deve compreender e expô-los conforme o sentido que os seus propugnadores lhes atribuem. Como adverte A. Tanquerey, «não faltam teólogos que atenuam as objeções de seus contraditores a fim de mais facilmente as poder dirimir; ou que distorcem o sentido de textos e fatos com o fito de responder sem embaraço; ou mesmo que dão demasiado crédito a argumentos meramente prováveis. Ora, tudo isso é estranho à perfeita sinceridade [...]. A verdade, para defender-se, não precisa de nossas mentiras.» [18]
IV. Humildade: fundada sobre a autoridade de Deus, a teologia demanda que obedeçamos docilmente às decisões do Magistério e aceitemos os seus ensinamentos; exige-nos também reverência ao que sentem e ensinam os Santos e Doutores da Igreja a respeito de determinado problema ou questão.
V. Perseverança: «a ninguém será possível progredir nos estudos teológicos, se não desejar aplicar-se-lhes constante e ardentemente. Não se diga que nada há de novo a descobrir em matéria teológica; ainda que as verdades de fé sejam perenes, podem sempre ser expostas e professadas de modos novos, mais adequados à linguagem dos homens do nosso tempo.» [19]
______________________
1 - Artigo retirado do site do Padre Paulo Ricardo: www.padrepauloricardo.org Por favor, não deixem de assinar o site, pois se trata, hoje, do melhor site, em língua portuguesa, de formação para o povo católico. Todos os direitos reservados ao Padre Paulo Ricardo.
Referências
- Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, I, q. 1, a. 3.
- Cf. A. Tanquerey, Synopsis Theologiæ Fundamentalis. Typis Societatis Sancti Joannis Evangelistæ. Paris: Descleé & Socii, 1943, t. 2, p. 189, n. 331.
- Cf. A. Knoll, Institutiones Theologiæ Theoreticæ seu Dogmatico-Polemicæ. Augustae Taurinorum, ex Pontificia Typographia, Petri Marietti, 1865, vol. 1, p. 4, §1.
- Teodoro da T. Del Greco, Teologia Moral. Trad. port. de Mons. J. Lafayette Álvares e Pe. Estêvão Bêntia. São Paulo: Paulinas, 1959, p. 23.
- Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 189, n. 332; v. G. Lahousse, Summa Philosophica ad Mentem D. Thomæ in Usum Alumnorum Seminariorum. Lovanii, Car. Peeters, 1892, vol. 1, p. 2, n. 2.
- I. Gredt, Elementa Philosophiæ Aristotelico-Thomisticæ. 13.ª ed., Barcelona: Herder, 1961, vol. 1, p. 3, n. 1: «Theologia procedit ex veritatibus revelatis, sub lumine supernaturali fidei cognitis.»
- Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 190, n. 333.
- Cf. Id., p. 191, n. 336.
- Cf. Id., p. 191, n. 337.
- Catecismo da Igreja Católica, n. 154
- Id., n. 156
- DS 3008.
- Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 191, n. 338.
- Cf. Id., pp. 219-221, nn. 379-382.
- J. Ratzinger, Natureza e Missão da Teologia. Trad. port. de Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 44 (grifo nosso).
- Id., p. 45.
- Serm. XXXVI in Cantic., 3 (trad. nossa).
- A. Tanquerey, op. cit., p. 220, n. 380.
- Id., p. 221, n. 382.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui o seu comentário.